sábado, 1 de junho de 2013

O RELÓGIO



KHAWAJAH NASR AL-DIN
O relógio de Nasrudin vivia marcando a hora errada.
- Mas será que não dá para tomar uma providência? - alguém comentou.
- Qual providência? - falou o Mullá.
- Bem, o relógio nunca marca a hora certa. Qualquer que seja a providência já será uma melhora.
Nasrudin deu uma martelada no relógio. O relógio parou.
- Você tem toda a razão - disse ele. - De fato, já dá para sentir uma melhora.
- Eu não quis dizer "qualquer providência", assim literalmente. Como é que agora o relógio pode estar melhor do que antes?
- Bem, antes ele nunca marcava a hora certa. Agora, pelo menos, duas vezes por dia ele vai estar certo.
Moral: É melhor estar certo algumas vezes do que jamais estar certo.

14 - COM ARTE E MALÍCIA, UMA SICILIANA ALIVIA UM MERCADOR TOSCANO DE TUDO AQUILO QUE LEVARA A PALERMO PARA VENDER; MAS ELE, POR SUA VEZ, FAZENDO CRER QUE VOLTARA
COM MUITO MAIS MERCADORIAS QUE ANTES, CONSEGUE COM ELA DINHEIRO EMPRESTADO E DEIXA-LHE, EM TROCA, ESTOPA E ÁGUA.
GIOVANNI BOCCACIO
(1313-1375 - Itália)
Há livros que são um marco, não só na História da Literatura, como também na história de seus países e da própria humanidade. Como a centena de histórias encadeadas por Boccacio em seu Decameron. Costumes, personagens e situações do época costuradas num fluxo contínuo e num tom irreverente de narrativa.

Relato de Dioneo:
- Graciosas senhoras, é fato manifesto que, quanto mais sutil for um logro e mais esperta a pessoa enganada, mais prazer se tirará dele. Por isso, embora todos tenham contado coisas belíssimas, eu pretendo a todos exceder narrando-lhes uma história que lhes dará mais satisfação que quantas me antecederam; que conta da enganada,a qual, mais que qualquer outra aqui descrita, era mestra na arte de enganar.
Havia o costume, que talvez ainda exista hoje, naqueles países banhados pelo mar, que todo mercador chegando a um porto devia, após desembarcar a carga que portava,levá-la a um depósito que chamavam Armazém da Alfândega, mantido pelo Estado ou pelo Príncipe local; onde o mercador, depois de declarado o valor das mercadorias,tinha a seu dispor local para guardá-las bem seguras, e tendo os funcionários tudo escrito no livro de registros e pagas as taxas de direito, davam-lhe chave e recibo de modo que ele assim pudesse retirá-las, de uma vez, ou pouco a pouco, ao passo que as vendesse. Era freqüente que o livro de registros, que guardava contabilidade fiel de tais negócios, fosse usado, por muitos banqueiros do lugar, como fonte de informaçãoe garantia do crédito e fortuna dos mercadores; esses banqueiros, sabendo da quantidade e qualidade do que havia, podiam, desta forma, melhor negociar.
Era assim em Palermo, na Sicília, lugar de belíssimas mulheres que eram, no entanto, famosas por sua falsidade; tendo a aparência, para quem não as conhecesse, de damas virtuosas e de grande honestidade. E, sendo elas mais propensas a tirar a pele que a lã de suas ovelhas, tão logo punham os olhos num mercador estrangeiro, imediatamente corriam ao Registro da Alfândega de modo a saber o valor da presa. Então, com olhares amorosos, gestos insinuantes e palavras de mel, se empenhavam em atrair e envolver o estranho na teia de seu amor. Muitos eram aqueles que, caindo no engodo, viam-se aliviados de boa parte do que possuíam, sem falar em outros que deixavam levar a carga e a nave, a carne e os ossos, tal era a habilidade dessas damas na arte de tosquiar.
Ora, não faz muito tempo que um jovem nosso patrício, o florentino Nicolò de Cignano, dito Salabaeto, ali chegou. Vinha, a mando de sua firma, para vender em Palermo uma carga de tecidos que lhe havia sobrado da feira de Salerno, carga essa avaliada em quinhentos florins de ouro. Tendo passado à Alfândega, depois de feito o recibo e no depósito guardar sua carga, Salabaeto sem apuro foi conhecer a cidade. Sendo pálido e louro, e não lhe faltando elegância, em pouco tempo ouviu falar dele uma das tosquiadoras, que se fazia chamar Madonna Iancofiore; que imediatamente pôs o olho em Salabaeto. Ao jovem, que percebera ser alvo deste interesse, impressionou a beleza da esperta siciliana e, imaginando tratar-se de uma importante senhora, passou a fazer-lhe a corte; tomado de mil cautelas e sem dizer nada a ninguém. Para
ver os seus olhos, passeava várias vezes diante da casa dela. lancofiore deixou que passassem alguns dias, ao fim dos quais, inflamada a paixão que despertara em Salabaeto, e fingindo estar também ela apaixonada por ele, mandou que o procurasse uma sua alcoviteira que, com os olhos chorosos e depois de muito teatro, disse ao rapaz que ele, com a beleza de seu rosto e o brilho de seu olhar, fizera sua senhora perder-se enamorada e que por ele dia e noite lancofiore suspirava, e mais, que por tudo isso, sua senhora desejava, mais que outra coisa no mundo, que ele, secretamente, em um bagno, fosse com ela encontrar-se; depois, tirando um anel da bolsa, o deu a Salabaeto da parte de sua ama, como prova de amor. Ouvindo isto, o rapaz, tomado de enorme alegria e sentindo-se o mais feliz dos mortais, tomou o anel e, beijando-o, colocou em seu dedo; dizendo à mulher que, se Madonna o amava, esse amor era mais que recíproco, pois ele também a amava, mais que tudo na vida, e que para vê-la ele iria a qualquer lugar do mundo, na hora que ela ordenasse.
Com tal resposta voltou a mulher à sua ama. E Salabaeto foi, pouco depois, informado do local do bagno onde devia encontrá-la à tarde do dia seguinte. Sem comentar com ninguém, à hora marcada, Salabaeto se apresentou ao bagno, que fora já reservado pela siciliana; e depois de pouco esperar, viu aparecerem duas escravas, uma carregando, sobre a cabeça, um belo e grande colchão de algodão macio e a outra um enorme cesto de vime cheio com diversas coisas; depois de estenderem o colchão em uma das câmeras de banho, sobre um estrado que ali havia, cobriram-no com lençóis, de fino linho, bordado com fio de seda, cobrindo tudo com uma colcha, da mais branca lã de Chipre, e dois travesseiros magnificamente trabalhados; terminado isto as duas se despiram e entraram ambas na piscina, que com escova, sabão e muita cura lavaram toda, antes de enchê-la de água. lancofiore chegou então, com outras duas escravas e, depois dos primeiros beijos e de um grande suspiro, disse ao jovem:
- Não sei de outra pessoa capaz de me arrastar a isto; tal é o fogo que me queima a alma por culpa sua, é um demônio o meu pequeno toscano.
Conforme o desejo dela, despiram-se e entraram no banho onde estavam as duas servas; sem deixar que outra mão o tocasse, usando um sabão de sândalo, ela mesma, com meticuloso carinho, o lavou da cabeça aos pés, deixando então que as escravas fizessem o mesmo com ela. Terminado o banho, vieram as escravas com dois alvíssimos lençóis que, perfumados de rosas, fizeram que tudo em torno cheirasse como um rosal; assim cada uma delas mantendo aberto um lençol ajudou a que neles se enrolassem, num a sua ama e no outro Salabaeto, e os conduziram ao leito. Quando os dois se secaram do suor, as escravas se retiraram levando com elas os lençóis, deixando-os
nus; da cesta saíram então vários frascos de prata, contendo finos perfumes, de rosas, flor de laranjeira e jasmim, com os quais foram borrifados pelas duas outras servas que, feito isso, retiraram ainda do cesto frutas e iguarias, bons copos e finos vinhos. Salabaeto sentia-se transportado ao Paraíso e, olhando o corpo da amada, cada vez a via mais bela; maldizendo o tempo, um século lhe parecia, que demoravam as servas em terminar e sair; enfim, tendo arranjado tudo e deixando aceso apenas um dos archotes, partiram a um comando da dama, e os dois ficaram a sós. Então, a dama e o jovem se uniram num abraço que, para o enorme deleite de Salabaeto, durou horas; tempo que ele viveu acreditando ter nos braços alguém tanto ou mais enamorada que ele mesmo. Quando chegou, enfim, a hora de partir, depois que se haviam vestido, lancofiore chamou as escravas, que vieram com água perfumada de flores para que eles lavassem o rosto e as mãos e com comida e vinho com que se reconfortassem.
Despedindo-se, disse a dama a Salabaeto:
- Se fosse de seu agrado, a mim daria enorme prazer que viesse a minha casa, esta noite, para jantar.
Salabaeto, já então prisioneiro de sua beleza e artifícios, e acreditando-se correspondido em seu amor, respondeu:
- Madonna, qualquer um dos seus desejos é grato a meu coração, desta noite para sempre, serão, para mim, comandos.
Voltou, assim, a dama a sua casa e, arrumando seu quarto com tudo que possuía de melhor e mais belo, ordenou que fosse preparada uma magnífica ceia para esperar Salabaeto, que, tão logo se fez noite, ali compareceu. lancofiore o recebeu com grande demonstração de amor e esplendidamente jantaram; depois passaram ao quarto dela tomado pelo canto de raríssimos pássaros de Chipre e pelo fino odor do lenho de aloé, o leito recoberto de brocado e as muitas coisas caras espalhadas nas estantes fizeram Salabaeto convencer-se de que lancofiore era, na verdade, uma nobre e rica donna; e se algum comentário ouvira contra ela debitou-o na conta do despeito de algum amante rejeitado e, se acaso a um outro não amara, com ele, por certo, seria diferente. E, em prazeres, com ela passou a noite, sempre mais apaixonado.
Chegado o amanhecer, lancofiore fez-lhe presente de um cinto de prata trabalhada de onde pendia rica bolsa e entre os abraços e beijos da partida, disse:
- Meu doce Salabaeto, não esqueça que, assim como sou sua, também é seu tudo aquilo que possuo, disponha de mim e do que eu possa como melhor for do seu prazer - e, com isso, deixou que ele voltasse ao mercado.
Assim esteve o jovem com ela várias vezes, sem que isso lhe custasse coisa alguma. Aconteceu então que ele vendesse, à vista e por bom preço, seus tecidos. O fato chegou logo aos ouvidos da mulher que teve a informação, de fonte sua, bem antes que o toscano falasse sobre isto; e estando com Salabaeto, nesta noite, o abraçou e beijou com redobrada paixão, como se quisesse morrer de amor em seus braços; ofereceu-lhe, como presente, dois belos copos de prata que ele não quis aceitar, tendo já recebido dela mais de trinta florins, sem que ela jamais tivesse tocado no seu dinheiro. Nesse ponto, depois de haver inflamado sua paixão com tantas demonstrações de amor, entrou no quarto uma escrava e, como previamente arranjado, a chamou; lancofiore saiu do quarto e, logo depois, voltou transtornada e atirou-se na cama em prantos e lamentações desesperadas como jamais se vira antes mulher alguma chorar.
Salabaeto, sem compreender, tomou-a em seus braços e implorando lhe disse:
- Conte, meu coração, que foi que, tão de repente, fez você ficar assim, qual a causa de tanta dor. Ah, minha alma, me diga!
Falando entre soluços, depois de ouvi-lo, algum tempo, implorar uma explicação, finalmente, ela contou:
- Ah! Meu doce senhor! Não sei o que lhe dizer. Não sei o que faça de mim. Justo agora me chegou uma carta de Messina, uma carta de meu irmão, pedindo que no máximo em oito dias eu lhe mande mil florins de ouro. Pede-me que venda tudo que não consiga empenhar. Se não lhe mando o dinheiro estará condenado à morte. Eu não sei como fazer para, em tão pouco tempo, levantar tal quantia; tivesse ao menos duas semanas para vender umas terras ou conseguir um empréstimo, mas em tão pouco tempo...
era melhor estar morta que receber esta carta - dito isto, ela voltou as suas lamentações sem parar de chorar.
Salabaeto, a quem o ardor da paixão privara de seu bom senso, acreditando verdadeiras as lágrimas e as palavras da donna, disse:
- Madonna, não posso dispor de mil florins, mas se quinhentos podem servir de alguma forma e for-lhe possível reparar-me em quinze dias, estão à sua disposição, pois por fortuna, justo esta manhã, vendi minha carga por esta quantia; fosse estado de outra forma nada poderia emprestar-lhe, pois este dinheiro é tudo que tenho.
- Oh! Meu pobre querido, você tem estado sem dinheiro todo este tempo. E por que não me pediu? De fato, não tenho mil, o que não me impediria de emprestar-lhe algum dinheiro, ao menos uns cem ou duzentos. E agora você me oferece o que de mim não pediu.
- Não por isso minha senhora que, houvesse eu tido a necessidade que a aflige, por certo teria contado com sua generosidade - disse Salabaeto, exaltado pelas palavras de lancofiore.
- Oh, meu Deus! - disse a mulher - Salabaeto querido! Vejo bem quanto sincero o seu amor por mim, quando, sem que lhe pedisse nada, me oferece assim tão grossa quantia no meu momento de maior necessidade. Eu era sua sem esse gesto depois dele duas vezes sua serei, para sempre, em reconhecimento pela vida de meu irmão. Sabe Deus que é contra minha vontade que aceito sua oferta, sabendo quanto é necessário o dinheiro na vida de um mercador, mas é na certeza de poder pagá-lo que o tomo. Se for preciso, empenharei esta casa, com tudo que nela há, para honrar este compromisso.
Ainda chorando abraçou Salabaeto que, a confortando, passou com ela a noite. E pela manhã, antes que ela o lembrasse do prometido, foi em busca dos quinhentos florins de ouro que ela recebeu, sorrindo com o coração enquanto chorava com os olhos, com muitos agradecimentos, mas sem recibo algum.
Depois que lancofiore pegou o dinheiro tudo mudou. A liberalidade com que o jovem era recebido, de um momento para o outro, desapareceu, e ele já não a tinha, como antes, sempre que queria. Quando a procurava, ela estava fora de casa ou, naquele dia, não podia recebê-lo. Seis vezes em sete ele nem mesmo a via, quando a via, faltavam os carinhos e doçuras de outros tempos e ela ficava com ele apenas o tempo necessário para dar-lhe uma desculpa e despedi-lo. E, passados um mês, e logo dois, e tendo ele afinal falado da dívida, tudo que recebeu em pagamento foram palavras e histórias. E, assim, Salabaeto afinal compreendeu a arte e malícia da mulher e a própria estupidez; e entendeu também que nada podia reclamar, não havendo documento do contrato ou testemunha. Envergonhado de haver sido logrado como um tolo, não contou nada a ninguém com temor de se ver, além de depenado, alvo do riso e do ridículo, e assim ficou duplamente amargurado.
Tendo já recebido várias cartas da firma em Pisa, pedindo que enviasse o dinheiro; vendo que seu erro seria descoberto e sem saber o que fazer, decidiu partir e embarcou numa nave, não para Pisa, mas para Nápoles.
Nessa época, em Nápoles vivia nosso patrício Pietro dello Canigiano, tesoureiro da Senhora Imperatriz de Constantinopia, homem de grande inteligência e de sutil engenho, muito amigo de Salabaeto e de sua família, a quem o jovem, envergonhado, contou o seu segredo, pedindo ao amigo que o ajudasse a encontrar uma posição com a qual pudesse refazer a vida, já que a Florença não podia mais voltar. Canigiano ouviu, com desprazer, a sua história e disse:
- Você agiu mal. Comportou-se horrivelmente com seus empregadores. E como um tolo gastou uma fortuna com prazeres. Mas que fazer? O erro já foi feito, agora só nos resta achar o remédio - e sendo um homem pratico de idéias, em pouco tempo vislumbrou um plano o qual explicou a Salabacto, que com tudo concordou.
Com algum dinheiro que lhe emprestou o Canigiano, Salabaeto comprou vinte tonéis de óleo e muitos fardos, cobertos de tela e muito bem atados, e com isto voltou a Palermo, onde na Alfândega registrou a carga no valor de dois mil florins de ouro e guardou-a num grande depósito, dizendo esperar ainda a chegada de outra carga no valor de três mil florins; e que a carga ficaria ali até quando lhe chegasse a outra. lancofiore logo soube da notícia e do valor da carga depositada, bem como daquela que ainda chegaria e pensou que lhe havia tirado pouco e, decidindo restituir-lhe os quinhentos para ter os cinco mil, mandou chamá-lo.
Salabaeto, agora já com os olhos bem abertos, foi vê-la; e ela, como se nada soubesse do que havia ele registrado na alfândega, o recebeu com grande demonstração de afeto, e começou:
- Cheguei a pensar que você se aborrecera comigo por não haver restituído seu dinheiro no prazo marcado... - rindo, Salabaeto a interrompeu, dizendo:
- Algo, sim, me aborreceu pensar que por tão pouco minha senhora sentisse algum constrangimento, quando eu de bom grado lhe daria até a alma. Mas para provar-lhe que jamais deixei de amá-la, escute o que lhe conto: tão grande é o amor que lhe devoto que vendi boa parte do que tinha e tudo investi em mercadorias; já no porto tenho uma carga no valor de dois mil florins e ainda espero outra, vinda do Levante, que vale mais de três. Aqui, em Palermo, quero estabelecer o meu negócio para nunca estar longe de você, pois me sinto mais feliz com seu amor que qualquer outro amante que viveu.
Ouvindo isso, lancofiore respondeu:
- Veja, Salabaeto, que muitíssimo me alegra tudo que lhe enaltece, sendo você aquele que amo mais que a mim mesma; mais feliz ainda me sinto em saber de suas intenções de aqui viver, já que assim mais tempo teremos para amar-nos; mas, ainda assim, devo-lhe desculpas; antes de você partir, por várias vezes, sei que o decepcionei, seja por não tê-lo recebido ou por havê-lo recebido sem o calor que você esperava e merecia e por fim houve ainda o fato, mais constrangedor, de não poder pagar no prazo combinado o dinheiro que você me emprestou. Queria que soubesse que eu, nesse tempo, vivia cheia de angústias e de dor, e quando se padece tantas penas, mesmo a quem se ama muito, acaba-se por tratar com amargor; são enormes os transtornos por que tem que passar uma mulher para conseguir, em pouco tempo, a quantia de mil florins, e salvar a vida de um irmão. Assim, na impossibilidade de cumprir o prometido, se termina por inventar histórias e contar mentiras. Entre nós há uma dívida em suspenso. Saiba que, pouco após sua partida, consegui o dinheiro, afinal, mas então não sabia onde enviá-lo, e guardei-o esperando por você. - E dando-lhe
a bolsa, que era a mesma que ele havia lhe emprestado, disse: - Verifique por favor se aí estão quinhentos.
Salabaeto sentiu-se felicíssimo de ver de volta os seus florins e respondeu:
Madonna, sei que é verdade o que diz, e seu gesto é prova eloqüente da sua sinceridade; mais ainda, lhe digo que de mim pode esperar que lhe sirva sempre e quando for preciso, com qualquer quantia que esteja em minhas posses.
Assim, reconciliados, voltaram a ser amantíssimos como antes; ele a gozar de seus favores, e ela, duicíssima, tudo fazendo para agradá-lo e demonstrar o seu amor.
Mas, Salabaeto estava decidido a fazê-la pagar o seu engano e provar do seu próprio veneno; assim, um dia que ela o convidara a comer em sua casa, Salabaeto chegou com um ar de desespero, como se estivesse para morrer de angústia; lancofiore, tomando-o nos braços e entre beijos, começou a perguntar-lhe o que tanto o afligia ao que ele, só depois de multa insistência, respondeu:
- Estou arruinado, pois o barco que transportava minhas mercadorias foi aprisionado por corsários de Mônaco que pedem um resgate de dez mil florins de ouro para libertar a nave, dos quais, a mim toca por rateio a quantia de mil florins e não tenho, comigo, uma moeda. Os quinhentos que recebi de você eu os mandei investir, a Nápoles, em tecidos para o negócio que quero montar. Se vendo a carga que tenho aqui, com o mercado como está, necessitando do dinheiro rapidamente e vendendo no atacado, não conseguirei nem a metade do que vale; não sendo ainda conhecido dos mercadores daqui, não sei a quem poderia recorrer. O que sei é que, se eu não consigo enviar este dinheiro logo, minha carga irá para Mônaco com os corsários e eu não tornarei a vê-la; daí meu desespero.
A mulher, ouvindo isto, ficou muito preocupada, com medo de perder todos os cinco mil florins com que contava, e começou a pensar no meio de impedir que a carga fosse levada a Mônaco, e com tudo isto em mente disse a ele:
- Deus sabe como, pelo amor que tenho a você, tudo isto me entristece, mas de que serve desesperar-se? Tivesse eu tal soma, tenho Deus por testemunha, por certo a emprestaria, mas não tenho, e assim o único recurso que me ocorre é ir falar com um banqueiro, que já me emprestou da outra vez quinhentos mil, por certo que com juros de usurário (de mim ele tomou trinta por cem) e exigindo boas garantias; se você quiser, eu posso servir de intermediária e ainda oferecer, como penhor por uma parte do empréstimo, meu crédito e tudo o que tenho nesta casa, mas que garantias você pode oferecer pelo restante?
Salabaeto entendeu, logo, quais eram os motivos por trás de tal oferta; assim como percebeu que era dela o dinheiro e que ela esperava ganhar os tais juros de usurário; o que vinha de encontro aos seus desejos. Então o jovem começou por agradecê-la muito e dizer que não estava em circunstâncias que lhe permitissem discutir taxas de juros e que assim servia-lhe o negócio; quanto às garantias, pensava que podia empenhar a carga que tinha na alfândega dando ao banqueiro o recibo do registro e guardando consigo a chave do depósito, assim estaria o outro garantido que nada seria retirado e ele mesmo também se assegurava que a carga não seria manuseada ou substituída, além de poder, usando a chave, mostrar a um possível comprador o que tinha para vender.
A mulher achou a proposta razoável e ótima a garantia, e assim, no outro dia, mandou vir um seu associado a quem, depois de explicar a história e dar-lhe mil florins, apresentou-o como o banqueiro. E o homem emprestou a Salabaeto os mil florins depois de fazê-lo assinar documento de seu débito e registrar no livro da Alfândega a carga como sua caso não fosse paga, na data, a promissória. Salabaeto, sem perder tempo, embarcou-se para Nápoles, com seus mil e quinhentos florins de ouro. Ali chegando, enviou os quinhentos a Florença, assim liquidando seu débito com a firma. Pagou também tudo que devia a Pietro dello Canigiano e outras dívidas, menores, que ali tinha. Muito riram ele e Canigiano, pensando no golpe que deram na siciliana. Então, decidido a abandonar o comércio, partiu de Nápoles e veio para Ferrara.
lancofiore, vendo que Salabaeto partira de Palermo, ficou muito surpresa e começou a suspeitar de alguma coisa; depois de passados dois meses e vendo que Salabaeto não voltava, mandou que o banqueiro abrisse o depósito. Examinados os tonéis, que jeviam conter óleo, descobriu-os cheios de água do mar sobre a qual boiavam dois dedos magros de azeite. Abrindo os fardos, verificou que em dois deles apenas havia panos, os outros estavam cheios de estopa, o que, tudo somado, não valia duzentos florins. E lancofiore, quando pensava nos quinhentos devolvidos e outros mil emprestados, muitas vezes pensava: "Quem se mete com florentino tem que ser muito ladino."
E assim ficou com o prejuízo e o engano, aprendendo que aquilo que alguém sabe fazer outro alguém poderá fazer melhor.

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