KHAWAJAH NASR AL-DIN
O relógio de Nasrudin vivia marcando a hora
errada.
- Mas será que não dá para tomar uma
providência? - alguém comentou.
- Qual providência? - falou o Mullá.
- Bem, o relógio nunca marca a hora certa.
Qualquer que seja a providência já será uma melhora.
Nasrudin deu uma martelada no relógio. O
relógio parou.
- Você tem toda a razão - disse ele. - De
fato, já dá para sentir uma melhora.
- Eu não quis dizer "qualquer providência",
assim literalmente. Como é que agora o relógio pode estar melhor do que antes?
- Bem, antes ele nunca marcava a hora
certa. Agora, pelo menos, duas vezes por dia ele vai estar certo.
Moral: É melhor estar certo algumas vezes
do que jamais estar certo.
14 - COM ARTE E MALÍCIA, UMA SICILIANA
ALIVIA UM MERCADOR TOSCANO DE TUDO AQUILO QUE LEVARA A PALERMO PARA VENDER; MAS
ELE, POR SUA VEZ, FAZENDO CRER QUE VOLTARA
COM MUITO MAIS MERCADORIAS QUE ANTES,
CONSEGUE COM ELA DINHEIRO EMPRESTADO E DEIXA-LHE, EM TROCA, ESTOPA E ÁGUA.
GIOVANNI BOCCACIO
(1313-1375 - Itália)
Há livros que são um marco, não só na
História da Literatura, como também na história de seus países e da própria
humanidade. Como a centena de histórias encadeadas por Boccacio em seu Decameron. Costumes,
personagens e situações do época costuradas num fluxo contínuo e num tom
irreverente de narrativa.
Relato de Dioneo:
- Graciosas senhoras, é fato manifesto que,
quanto mais sutil for um logro e mais esperta a pessoa enganada, mais prazer se
tirará dele. Por isso, embora todos tenham contado coisas belíssimas, eu pretendo a
todos exceder narrando-lhes uma história que lhes dará mais satisfação que
quantas me antecederam; que conta da enganada,a qual, mais que qualquer outra aqui
descrita, era mestra na arte de enganar.
Havia o costume, que talvez ainda exista
hoje, naqueles países banhados pelo mar, que todo mercador chegando a um porto
devia, após desembarcar a carga que portava,levá-la a um depósito que chamavam Armazém
da Alfândega, mantido pelo Estado ou pelo Príncipe local; onde o mercador,
depois de declarado o valor das mercadorias,tinha a seu dispor local para guardá-las
bem seguras, e tendo os funcionários tudo escrito no livro de registros e pagas
as taxas de direito, davam-lhe chave e recibo de modo que ele assim pudesse retirá-las,
de uma vez, ou pouco a pouco, ao passo que as vendesse. Era freqüente que o
livro de registros, que guardava contabilidade fiel de tais negócios, fosse usado, por
muitos banqueiros do lugar, como fonte de informaçãoe garantia do crédito e fortuna dos
mercadores; esses banqueiros, sabendo da quantidade e qualidade do que havia,
podiam, desta forma, melhor negociar.
Era assim em Palermo, na Sicília, lugar de
belíssimas mulheres que eram, no entanto, famosas por sua falsidade; tendo a
aparência, para quem não as conhecesse, de damas virtuosas e de grande honestidade. E,
sendo elas mais propensas a tirar a pele que a lã de suas ovelhas, tão logo
punham os olhos num mercador estrangeiro, imediatamente corriam ao Registro da
Alfândega de modo a saber o valor da presa. Então, com olhares amorosos, gestos
insinuantes e palavras de mel, se empenhavam em atrair e envolver o estranho na teia de
seu amor. Muitos eram aqueles que, caindo no engodo, viam-se aliviados de boa
parte do que possuíam, sem falar em outros que deixavam levar a carga e a nave, a
carne e os ossos, tal era a habilidade dessas damas na arte de tosquiar.
Ora, não faz muito tempo que um jovem nosso
patrício, o florentino Nicolò de Cignano, dito Salabaeto, ali chegou. Vinha, a
mando de sua firma, para vender em Palermo uma carga de tecidos que lhe havia sobrado
da feira de Salerno, carga essa avaliada em quinhentos florins de ouro. Tendo
passado à Alfândega, depois de feito o recibo e no depósito guardar sua carga, Salabaeto
sem apuro foi conhecer a cidade. Sendo pálido e louro, e não lhe faltando
elegância, em pouco tempo ouviu falar dele uma das tosquiadoras, que se fazia chamar
Madonna Iancofiore; que imediatamente pôs o olho em Salabaeto. Ao jovem, que
percebera ser alvo deste interesse, impressionou a beleza da esperta siciliana e, imaginando
tratar-se de uma importante senhora, passou a fazer-lhe a corte; tomado de mil
cautelas e sem dizer nada a ninguém. Para
ver os seus olhos, passeava várias vezes
diante da casa dela. lancofiore deixou que passassem alguns dias, ao fim dos
quais, inflamada a paixão que despertara em Salabaeto, e fingindo estar também ela
apaixonada por ele, mandou que o procurasse uma sua alcoviteira que, com os
olhos chorosos e depois de muito teatro, disse ao rapaz que ele, com a beleza de seu rosto
e o brilho de seu olhar, fizera sua senhora perder-se enamorada e que por ele
dia e noite lancofiore suspirava, e mais, que por tudo isso, sua senhora desejava,
mais que outra coisa no mundo, que ele, secretamente, em um bagno, fosse com
ela encontrar-se; depois, tirando um anel da bolsa, o deu a Salabaeto da parte de sua
ama, como prova de amor. Ouvindo isto, o rapaz, tomado de enorme alegria e
sentindo-se o mais feliz dos mortais, tomou o anel e, beijando-o, colocou em seu dedo;
dizendo à mulher que, se Madonna o amava, esse amor era mais que recíproco,
pois ele também a amava, mais que tudo na vida, e que para vê-la ele iria a qualquer lugar
do mundo, na hora que ela ordenasse.
Com tal resposta voltou a mulher à sua ama.
E Salabaeto foi, pouco depois, informado do local do bagno onde devia
encontrá-la à tarde do dia seguinte. Sem comentar com ninguém, à hora marcada, Salabaeto se
apresentou ao bagno, que fora já reservado pela siciliana; e depois de pouco
esperar, viu aparecerem duas escravas, uma carregando, sobre a cabeça, um belo e
grande colchão de algodão macio e a outra um enorme cesto de vime cheio com
diversas coisas; depois de estenderem o colchão em uma das câmeras de banho, sobre um
estrado que ali havia, cobriram-no com lençóis, de fino linho, bordado com fio
de seda, cobrindo tudo com uma colcha, da mais branca lã de Chipre, e dois travesseiros
magnificamente trabalhados; terminado isto as duas se despiram e entraram ambas
na piscina, que com escova, sabão e muita cura lavaram toda, antes de enchê-la de
água. lancofiore chegou então, com outras duas escravas e, depois dos primeiros
beijos e de um grande suspiro, disse ao jovem:
- Não sei de outra pessoa capaz de me
arrastar a isto; tal é o fogo que me queima a alma por culpa sua, é um demônio
o meu pequeno toscano.
Conforme o desejo dela, despiram-se e
entraram no banho onde estavam as duas servas; sem deixar que outra mão o
tocasse, usando um sabão de sândalo, ela mesma, com meticuloso carinho, o lavou da cabeça aos
pés, deixando então que as escravas fizessem o mesmo com ela. Terminado o
banho, vieram as escravas com dois alvíssimos lençóis que, perfumados de rosas, fizeram
que tudo em torno cheirasse como um rosal; assim cada uma delas mantendo aberto
um lençol ajudou a que neles se enrolassem, num a sua ama e no outro Salabaeto, e os
conduziram ao leito. Quando os dois se secaram do suor, as escravas se
retiraram levando com elas os lençóis, deixando-os
nus; da cesta saíram então vários frascos
de prata, contendo finos perfumes, de rosas, flor de laranjeira e jasmim, com
os quais foram borrifados pelas duas outras servas que, feito isso, retiraram ainda do
cesto frutas e iguarias, bons copos e finos vinhos. Salabaeto sentia-se
transportado ao Paraíso e, olhando o corpo da amada, cada vez a via mais bela; maldizendo
o tempo, um século lhe parecia, que demoravam as servas em terminar e sair;
enfim, tendo arranjado tudo e deixando aceso apenas um dos archotes, partiram a um
comando da dama, e os dois ficaram a sós. Então, a dama e o jovem se uniram num
abraço que, para o enorme deleite de Salabaeto, durou horas; tempo que ele viveu
acreditando ter nos braços alguém tanto ou mais enamorada que ele mesmo. Quando
chegou, enfim, a hora de partir, depois que se haviam vestido, lancofiore chamou as escravas, que
vieram com água perfumada de flores para que eles lavassem o rosto e as mãos e
com comida e vinho com que se reconfortassem.
Despedindo-se, disse a dama a Salabaeto:
- Se fosse de seu agrado, a mim daria
enorme prazer que viesse a minha casa, esta noite, para jantar.
Salabaeto, já então prisioneiro de sua
beleza e artifícios, e acreditando-se correspondido em seu amor, respondeu:
- Madonna, qualquer um dos seus desejos é
grato a meu coração, desta noite para sempre, serão, para mim, comandos.
Voltou, assim, a dama a sua casa e,
arrumando seu quarto com tudo que possuía de melhor e mais belo, ordenou que
fosse preparada uma magnífica ceia para esperar Salabaeto, que, tão logo se fez noite, ali
compareceu. lancofiore o recebeu com grande demonstração de amor e esplendidamente
jantaram; depois passaram ao quarto dela tomado pelo canto de raríssimos
pássaros de Chipre e pelo fino odor do lenho de aloé, o leito recoberto de
brocado e as muitas coisas caras espalhadas nas estantes fizeram Salabaeto convencer-se de que
lancofiore era, na verdade, uma nobre e rica donna; e se algum comentário
ouvira contra ela debitou-o na conta do despeito de algum amante rejeitado e, se acaso a um
outro não amara, com ele, por certo, seria diferente. E, em prazeres, com ela
passou a noite, sempre mais apaixonado.
Chegado o amanhecer, lancofiore fez-lhe
presente de um cinto de prata trabalhada de onde pendia rica bolsa e entre os
abraços e beijos da partida, disse:
- Meu doce Salabaeto, não esqueça que,
assim como sou sua, também é seu tudo aquilo que possuo, disponha de mim e do
que eu possa como melhor for do seu prazer - e, com isso, deixou que ele voltasse ao
mercado.
Assim esteve o jovem com ela várias vezes,
sem que isso lhe custasse coisa alguma. Aconteceu então que ele vendesse, à
vista e por bom preço, seus tecidos. O fato chegou logo aos ouvidos da mulher que teve
a informação, de fonte sua, bem antes que o toscano falasse sobre isto; e
estando com Salabaeto, nesta noite, o abraçou e beijou com redobrada paixão, como se quisesse
morrer de amor em seus braços; ofereceu-lhe, como presente, dois belos copos de
prata que ele não quis aceitar, tendo já recebido dela mais de trinta florins,
sem que ela jamais tivesse tocado no seu dinheiro. Nesse ponto, depois de haver
inflamado sua paixão com tantas demonstrações de amor, entrou no quarto uma escrava e,
como previamente arranjado, a chamou; lancofiore saiu do quarto e, logo depois,
voltou transtornada e atirou-se na cama em prantos e lamentações desesperadas como
jamais se vira antes mulher alguma chorar.
Salabaeto, sem compreender, tomou-a em seus
braços e implorando lhe disse:
- Conte, meu coração, que foi que, tão de
repente, fez você ficar assim, qual a causa de tanta dor. Ah, minha alma, me
diga!
Falando entre soluços, depois de ouvi-lo,
algum tempo, implorar uma explicação, finalmente, ela contou:
- Ah! Meu doce senhor! Não sei o que lhe
dizer. Não sei o que faça de mim. Justo agora me chegou uma carta de Messina,
uma carta de meu irmão, pedindo que no máximo em oito dias eu lhe mande mil florins de
ouro. Pede-me que venda tudo que não consiga empenhar. Se não lhe mando o
dinheiro estará condenado à morte. Eu não sei como fazer para, em tão pouco tempo,
levantar tal quantia; tivesse ao menos duas semanas para vender umas terras ou
conseguir um empréstimo, mas em tão pouco tempo...
era melhor estar morta que receber esta
carta - dito isto, ela voltou as suas lamentações sem parar de chorar.
Salabaeto, a quem o ardor da paixão privara
de seu bom senso, acreditando verdadeiras as lágrimas e as palavras da donna,
disse:
- Madonna, não posso dispor de mil florins,
mas se quinhentos podem servir de alguma forma e for-lhe possível reparar-me em
quinze dias, estão à sua disposição, pois por fortuna, justo esta manhã, vendi
minha carga por esta quantia; fosse estado de outra forma nada poderia
emprestar-lhe, pois este dinheiro é tudo que tenho.
- Oh! Meu pobre querido, você tem estado
sem dinheiro todo este tempo. E por que não me pediu? De fato, não tenho mil, o
que não me impediria de emprestar-lhe algum dinheiro, ao menos uns cem ou
duzentos. E agora você me oferece o que de mim não pediu.
- Não por isso minha senhora que, houvesse
eu tido a necessidade que a aflige, por certo teria contado com sua
generosidade - disse Salabaeto, exaltado pelas palavras de lancofiore.
- Oh, meu Deus! - disse a mulher -
Salabaeto querido! Vejo bem quanto sincero o seu amor por mim, quando, sem que
lhe pedisse nada, me oferece assim tão grossa quantia no meu momento de maior necessidade. Eu era
sua sem esse gesto depois dele duas vezes sua serei, para sempre, em
reconhecimento pela vida de meu irmão. Sabe Deus que é contra minha vontade que aceito sua
oferta, sabendo quanto é necessário o dinheiro na vida de um mercador, mas é na
certeza de poder pagá-lo que o tomo. Se for preciso, empenharei esta casa, com tudo
que nela há, para honrar este compromisso.
Ainda chorando abraçou Salabaeto que, a
confortando, passou com ela a noite. E pela manhã, antes que ela o lembrasse do
prometido, foi em busca dos quinhentos florins de ouro que ela recebeu, sorrindo com o
coração enquanto chorava com os olhos, com muitos agradecimentos, mas sem
recibo algum.
Depois que lancofiore pegou o dinheiro tudo
mudou. A liberalidade com que o jovem era recebido, de um momento para o outro,
desapareceu, e ele já não a tinha, como antes, sempre que queria. Quando a
procurava, ela estava fora de casa ou, naquele dia, não podia recebê-lo. Seis
vezes em sete ele nem mesmo a via, quando a via, faltavam os carinhos e doçuras de outros
tempos e ela ficava com ele apenas o tempo necessário para dar-lhe uma desculpa
e despedi-lo. E, passados um mês, e logo dois, e tendo ele afinal falado da dívida,
tudo que recebeu em pagamento foram palavras e histórias. E, assim, Salabaeto
afinal compreendeu a arte e malícia da mulher e a própria estupidez; e entendeu também
que nada podia reclamar, não havendo documento do contrato ou testemunha.
Envergonhado de haver sido logrado como um tolo, não contou nada a ninguém com temor de se
ver, além de depenado, alvo do riso e do ridículo, e assim ficou duplamente
amargurado.
Tendo já recebido várias cartas da firma em
Pisa, pedindo que enviasse o dinheiro; vendo que seu erro seria descoberto e
sem saber o que fazer, decidiu partir e embarcou numa nave, não para Pisa, mas para
Nápoles.
Nessa época, em Nápoles vivia nosso
patrício Pietro dello Canigiano, tesoureiro da Senhora Imperatriz de
Constantinopia, homem de grande inteligência e de sutil engenho, muito amigo de Salabaeto e de sua
família, a quem o jovem, envergonhado, contou o seu segredo, pedindo ao amigo
que o ajudasse a encontrar uma posição com a qual pudesse refazer a vida, já que a
Florença não podia mais voltar. Canigiano ouviu, com desprazer, a sua história
e disse:
- Você agiu mal. Comportou-se horrivelmente
com seus empregadores. E como um tolo gastou uma fortuna com prazeres. Mas que
fazer? O erro já foi feito, agora só nos resta achar o remédio - e sendo um
homem pratico de idéias, em pouco tempo vislumbrou um plano o qual explicou a
Salabacto, que com tudo concordou.
Com algum dinheiro que lhe emprestou o
Canigiano, Salabaeto comprou vinte tonéis de óleo e muitos fardos, cobertos de
tela e muito bem atados, e com isto voltou a Palermo, onde na Alfândega registrou a
carga no valor de dois mil florins de ouro e guardou-a num grande depósito,
dizendo esperar ainda a chegada de outra carga no valor de três mil florins; e que a carga
ficaria ali até quando lhe chegasse a outra. lancofiore logo soube da notícia e
do valor da carga depositada, bem como daquela que ainda chegaria e pensou que lhe
havia tirado pouco e, decidindo restituir-lhe os quinhentos para ter os cinco
mil, mandou chamá-lo.
Salabaeto, agora já com os olhos bem
abertos, foi vê-la; e ela, como se nada soubesse do que havia ele registrado na
alfândega, o recebeu com grande demonstração de afeto, e começou:
- Cheguei a pensar que você se aborrecera
comigo por não haver restituído seu dinheiro no prazo marcado... - rindo,
Salabaeto a interrompeu, dizendo:
- Algo, sim, me aborreceu pensar que por
tão pouco minha senhora sentisse algum constrangimento, quando eu de bom grado
lhe daria até a alma. Mas para provar-lhe que jamais deixei de amá-la, escute o que
lhe conto: tão grande é o amor que lhe devoto que vendi boa parte do que tinha
e tudo investi em mercadorias; já no porto tenho uma carga no valor de dois mil florins
e ainda espero outra, vinda do Levante, que vale mais de três. Aqui, em
Palermo, quero estabelecer o meu negócio para nunca estar longe de você, pois me sinto
mais feliz com seu amor que qualquer outro amante que viveu.
Ouvindo isso, lancofiore respondeu:
- Veja, Salabaeto, que muitíssimo me alegra
tudo que lhe enaltece, sendo você aquele que amo mais que a mim mesma; mais
feliz ainda me sinto em saber de suas intenções de aqui viver, já que assim mais tempo
teremos para amar-nos; mas, ainda assim, devo-lhe desculpas; antes de você
partir, por várias vezes, sei que o decepcionei, seja por não tê-lo recebido ou por havê-lo
recebido sem o calor que você esperava e merecia e por fim houve ainda o fato,
mais constrangedor, de não poder pagar no prazo combinado o dinheiro que você me
emprestou. Queria que soubesse que eu, nesse tempo, vivia cheia de angústias e
de dor, e quando se padece tantas penas, mesmo a quem se ama muito, acaba-se por
tratar com amargor; são enormes os transtornos por que tem que passar uma
mulher para conseguir, em pouco tempo, a quantia de mil florins, e salvar a vida de um
irmão. Assim, na impossibilidade de cumprir o prometido, se termina por
inventar histórias e contar mentiras. Entre nós há uma dívida em suspenso. Saiba que, pouco
após sua partida, consegui o dinheiro, afinal, mas então não sabia onde
enviá-lo, e guardei-o esperando por você. - E dando-lhe
a bolsa, que era a mesma que ele havia lhe
emprestado, disse: - Verifique por favor se aí estão quinhentos.
Salabaeto sentiu-se felicíssimo de ver de
volta os seus florins e respondeu:
Madonna, sei que é verdade o que diz, e seu
gesto é prova eloqüente da sua sinceridade; mais ainda, lhe digo que de mim
pode esperar que lhe sirva sempre e quando for preciso, com qualquer quantia que
esteja em minhas posses.
Assim, reconciliados, voltaram a ser
amantíssimos como antes; ele a gozar de seus favores, e ela, duicíssima, tudo
fazendo para agradá-lo e demonstrar o seu amor.
Mas, Salabaeto estava decidido a fazê-la pagar
o seu engano e provar do seu próprio veneno; assim, um dia que ela o convidara
a comer em sua casa, Salabaeto chegou com um ar de desespero, como se estivesse
para morrer de angústia; lancofiore, tomando-o nos braços e entre beijos,
começou a perguntar-lhe o que tanto o afligia ao que ele, só depois de multa insistência,
respondeu:
- Estou arruinado, pois o barco que
transportava minhas mercadorias foi aprisionado por corsários de Mônaco que
pedem um resgate de dez mil florins de ouro para libertar a nave, dos quais, a mim toca por
rateio a quantia de mil florins e não tenho, comigo, uma moeda. Os quinhentos
que recebi de você eu os mandei investir, a Nápoles, em tecidos para o negócio que
quero montar. Se vendo a carga que tenho aqui, com o mercado como está,
necessitando do dinheiro rapidamente e vendendo no atacado, não conseguirei nem a metade do
que vale; não sendo ainda conhecido dos mercadores daqui, não sei a quem
poderia recorrer. O que sei é que, se eu não consigo enviar este dinheiro logo, minha
carga irá para Mônaco com os corsários e eu não tornarei a vê-la; daí meu
desespero.
A mulher, ouvindo isto, ficou muito
preocupada, com medo de perder todos os cinco mil florins com que contava, e
começou a pensar no meio de impedir que a carga fosse levada a Mônaco, e com tudo isto em
mente disse a ele:
- Deus sabe como, pelo amor que tenho a
você, tudo isto me entristece, mas de que serve desesperar-se? Tivesse eu tal
soma, tenho Deus por testemunha, por certo a emprestaria, mas não tenho, e assim o
único recurso que me ocorre é ir falar com um banqueiro, que já me emprestou da
outra vez quinhentos mil, por certo que com juros de usurário (de mim ele tomou trinta
por cem) e exigindo boas garantias; se você quiser, eu posso servir de
intermediária e ainda oferecer, como penhor por uma parte do empréstimo, meu crédito e tudo
o que tenho nesta casa, mas que garantias você pode oferecer pelo restante?
Salabaeto entendeu, logo, quais eram os
motivos por trás de tal oferta; assim como percebeu que era dela o dinheiro e
que ela esperava ganhar os tais juros de usurário; o que vinha de encontro aos seus desejos.
Então o jovem começou por agradecê-la muito e dizer que não estava em
circunstâncias que lhe permitissem discutir taxas de juros e que assim servia-lhe o negócio;
quanto às garantias, pensava que podia empenhar a carga que tinha na alfândega
dando ao banqueiro o recibo do registro e guardando consigo a chave do depósito,
assim estaria o outro garantido que nada seria retirado e ele mesmo também se
assegurava que a carga não seria manuseada ou substituída, além de poder, usando a
chave, mostrar a um possível comprador o que tinha para vender.
A mulher achou a proposta razoável e ótima
a garantia, e assim, no outro dia, mandou vir um seu associado a quem, depois
de explicar a história e dar-lhe mil florins, apresentou-o como o banqueiro. E o homem
emprestou a Salabaeto os mil florins depois de fazê-lo assinar documento de seu
débito e registrar no livro da Alfândega a carga como sua caso não fosse paga, na
data, a promissória. Salabaeto, sem perder tempo, embarcou-se para Nápoles, com
seus mil e quinhentos florins de ouro. Ali chegando, enviou os quinhentos a Florença,
assim liquidando seu débito com a firma. Pagou também tudo que devia a Pietro
dello Canigiano e outras dívidas, menores, que ali tinha. Muito riram ele e Canigiano,
pensando no golpe que deram na siciliana. Então, decidido a abandonar o
comércio, partiu de Nápoles e veio para Ferrara.
lancofiore, vendo que Salabaeto partira de
Palermo, ficou muito surpresa e começou a suspeitar de alguma coisa; depois de
passados dois meses e vendo que Salabaeto não voltava, mandou que o banqueiro abrisse
o depósito. Examinados os tonéis, que jeviam conter óleo, descobriu-os cheios
de água do mar sobre a qual boiavam dois dedos magros de azeite. Abrindo os fardos,
verificou que em dois deles apenas havia panos, os outros estavam cheios de
estopa, o que, tudo somado, não valia duzentos florins. E lancofiore, quando pensava nos
quinhentos devolvidos e outros mil emprestados, muitas vezes pensava:
"Quem se mete com florentino tem que ser muito ladino."
E assim ficou com o prejuízo e o engano,
aprendendo que aquilo que alguém sabe fazer outro alguém poderá fazer melhor.

Nenhum comentário:
Postar um comentário