sábado, 1 de junho de 2013

DOM POMPÓRIO, MONGE, É DENUNCIADO AO ABADE PELA SUA EXAGERADA GULA; E CRITICANDO O ABADE COM UMA FÁBULA, LIVRA-SE DA CENSURA.



FRANCO SACCHETTI
(Circa 1332-1400 - Itália)
Mais jovem do que Boccacio, mas seu contemporâneo e um de seus inúmeros discípulos, o fidalgo Franco Sacchetti é autor de O Livro das 300 Novelas (Trecentonovelle), obra cheia de anedotas, historietas cômicas baseadas em fatos reais e que nos fornecem uma eficaz imagem dos costumes (e do humor moralista) do Renascimento italiano.

Em tempos que lá se vão, havia num famoso mosteiro um monge de idade madura, mas notável e grande comilão. Vangloriava-se de comer numa única refeição um quarto de gordo vitelo e um par de capões. Tinha este monge, que se chamava Dom Pompório, um prato ao qual pusera o nome de oratório de devoção, e onde cabiam sete grandes escudelas de sopa. E, além do conduto, ele, cada dia, tanto ao almoço como ao jantar, enchia o pratinho de caldo ou de outra qualquer espécie de sopa, não deixando sobrar a menor migalha. E todos os restos que os outros monges deixavam, fossem poucos ou muitos, eram apresentados ao oratório e ele os punha na devoção. E, por mais sujos e imundos que fossem, pois que tudo servia aos fins do seu oratório, devorava-os a todos que nem lobo esfomeado. Vendo os outros monges a sua desencada
gula e voracidade, e admirados em extremo de tanta indolência, com palavras ora boas ora más o repreendiam. Porém, quanto mais o corrigiam os monges, tanto mais lhe crescia o desejo de juntar mais caldo ao seu oratório, pouco se lhe dando de qualquer repreensão. Tinha entretanto o glutão uma virtude: não se zangava nunca; e cada um podia contra ele dizer o que quisesse, que ele não o levava a mal.
Deu-se que um dia o denunciaram ao reverendo abade; o qual, ouvida a queixa, o mandou vir, e lhe disse:
Dom Pompório, fizeram-me uma grande representação contra ações vossas, a qual, além de constituir grande vergonha, suscita escândalo em todo o mosteiro.
Respondeu Dom Pompório:
- E que oposição me fazem a mim esses acusadores? Sou o monge mais mansueto e mais pacífico de vosso mosteiro; não molesto nem estorvo nunca a ninguém, antes vivo com tranqüilidade e quietude, e se sou por outrem injuriado, sofro com paciência e nem por isso me escandalizo.
Disse o abade:
- Então, parece-vos louvável este ato? Tendes um prato não de religioso, mas de fétido porco, no qual, além do vosso trivial, pondes todos os restos dos outros, e sem respeito nem vergonha, não como criatura humana nem como religioso, mas como besta esfaimada, os devorais. Não percebeis, homem grosseiro e inútil, que todos vos têm como seu bufão?
Respondeu Dom Pompório:
- E como deveria envergonhar-me, padre? Onde se encontra agora a vergonha no mundo? E quem a teme? Mas, se me dais licença para falar com segurança, responder-vos-ei; se não, obedecerei a vossas ordens, e observarei em silêncio.
Disse o abade:
- Dizei o que vos aprouver, que estamos contentes em que faleis.
Tranqüilizado, disse Dom Pompório:
- Pai abade, estamos na situação daqueles que carregam odres às costas: cada um vê o do companheiro, mas não vê o seu. Se eu comesse iguarias lautas, como o fazem os grandes senhores, decerto comeria muito menos do que como. Mas, comendo iguarias grosseiras, de fácil digestão, não me parece vergonhoso o muito comer.
O abade, que vivia suntuosamente, com o prior e outros amigos, de bons capões, faisães, perdizes e demais espécies de aves, compreendeu o que queria dizer o monge; e receando ser apontado por ele às claras, absolveu-o, permitindo-lhe comesse a seu talante; pior para quantos não sabiam bem comer e beber.
Indo-se o abade, Dom Pompório, absolvido, dia a dia dobrou a comida, acrescentando ao santo oratório do bom prato a devoção; e porque era seriamente repreendido dos monges por semelhante bestialidade, subiu ao púlpito do refeitório e com belos modos contou esta breve fábula:
- Encontraram-se, já faz muito tempo, o vento, a água e a vergonha numa taverna, e comeram juntos; e, praticando de coisas várias, disse a vergonha ao vento e à água: - "Quando, irmão e irmã, voltaremos a estar juntos tão pacificamente como agora?" A água respondeu: - "Certamente a vergonha diz a verdade; pois quem sabe quando virá ocasião de nos reencontrarmos juntos? Mas, se eu te quisesse encontrar, ó irmão, onde fica a tua morada?" Disse o vento: - "Minhas irmãs, cada vez que me quiserdes encontrar para gozarmos o prazer de estar juntos, olhai por qualquer porta aberta, ou rua estreita qualquer, que logo me encontrareis, pois é ali a minha residência. E tu, água, onde moras?" - "Eu estou, disse a água, nos mais baixos pauis, entre aqueles caniços; e por mais seca que seja a terra, sempre lá me encontrareis. E tu, vergonha, qual é a tua estância?" - "Eu, em verdade, respondeu a vergonha, não sei, pois que sou pobrezinha e por todos enxotada. Se olhardes entre os grandes, não me encontrareis, porque não querem ver-me e zombam de mim. Se olhardes entre a piche, são desavergonhados que não se importam comigo. Se olhardes entre as mulheres, tanto casadas como viúvas e donzelas, tampouco me encontrareis, dado que fogem de mim como de coisa monstruosa. Se olhardes entre os religiosos, longe deles estarei, pois que com bastões e galhas me espantam; de sorte que até agora eu não tenho habitação onde pousar; e, se não puder acompanhar-vos, veja-me privada de toda a esperança." Ouvindo isto, o vento e a água moveram-se a compaixão e acolheram-na em sua companhia. Não ficaram juntos por muito tempo, porque se levantou grandíssima tempestade, e a pobrezinha, trabalhada do vento e da água, não tendo onde pousar-se, afundou no mar. Pelo quê eu a tenho procurado em muitos lugares, e anda a procuro; mas não consegui encontrá-la, nem a ela, nem a ninguém que me soubesse dizer onde ela estava. E, não a encontrando, não me importo dela nem muito em pouco; e por isso obrarei à minha maneira, e vós à vossa, pois que hoje no mundo não se encontra a vergonha.

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