FRANCO SACCHETTI
(Circa 1332-1400 - Itália)
Mais jovem do que Boccacio, mas seu contemporâneo
e um de seus inúmeros discípulos, o fidalgo Franco Sacchetti é autor de O Livro
das 300 Novelas (Trecentonovelle), obra cheia de anedotas, historietas cômicas
baseadas em fatos reais e que nos fornecem uma eficaz imagem dos costumes (e do
humor moralista) do Renascimento italiano.
Em tempos que lá se vão, havia num famoso
mosteiro um monge de idade madura, mas notável e grande comilão. Vangloriava-se
de comer numa única refeição um quarto de gordo vitelo e um par de capões. Tinha
este monge, que se chamava Dom Pompório, um prato ao qual pusera o nome de
oratório de devoção, e onde cabiam sete grandes escudelas de sopa. E, além do conduto, ele,
cada dia, tanto ao almoço como ao jantar, enchia o pratinho de caldo ou de
outra qualquer espécie de sopa, não deixando sobrar a menor migalha. E todos os restos
que os outros monges deixavam, fossem poucos ou muitos, eram apresentados ao
oratório e ele os punha na devoção. E, por mais sujos e imundos que fossem, pois que
tudo servia aos fins do seu oratório, devorava-os a todos que nem lobo
esfomeado. Vendo os outros monges a sua desencada
gula e voracidade, e admirados em extremo
de tanta indolência, com palavras ora boas ora más o repreendiam. Porém, quanto
mais o corrigiam os monges, tanto mais lhe crescia o desejo de juntar mais caldo
ao seu oratório, pouco se lhe dando de qualquer repreensão. Tinha entretanto o
glutão uma virtude: não se zangava nunca; e cada um podia contra ele dizer o que
quisesse, que ele não o levava a mal.
Deu-se que um dia o denunciaram ao
reverendo abade; o qual, ouvida a queixa, o mandou vir, e lhe disse:
Dom Pompório, fizeram-me uma grande
representação contra ações vossas, a qual, além de constituir grande vergonha,
suscita escândalo em todo o mosteiro.
Respondeu Dom Pompório:
- E que oposição me fazem a mim esses
acusadores? Sou o monge mais mansueto e mais pacífico de vosso mosteiro; não
molesto nem estorvo nunca a ninguém, antes vivo com tranqüilidade e quietude, e se sou por
outrem injuriado, sofro com paciência e nem por isso me escandalizo.
Disse o abade:
- Então, parece-vos louvável este ato?
Tendes um prato não de religioso, mas de fétido porco, no qual, além do vosso
trivial, pondes todos os restos dos outros, e sem respeito nem vergonha, não como
criatura humana nem como religioso, mas como besta esfaimada, os devorais. Não
percebeis, homem grosseiro e inútil, que todos vos têm como seu bufão?
Respondeu Dom Pompório:
- E como deveria envergonhar-me, padre?
Onde se encontra agora a vergonha no mundo? E quem a teme? Mas, se me dais
licença para falar com segurança, responder-vos-ei; se não, obedecerei a vossas ordens, e
observarei em silêncio.
Disse o abade:
- Dizei o que vos aprouver, que estamos
contentes em que faleis.
Tranqüilizado, disse Dom Pompório:
- Pai abade, estamos na situação daqueles
que carregam odres às costas: cada um vê o do companheiro, mas não vê o seu. Se
eu comesse iguarias lautas, como o fazem os grandes senhores, decerto comeria muito
menos do que como. Mas, comendo iguarias grosseiras, de fácil digestão, não me
parece vergonhoso o muito comer.
O abade, que vivia suntuosamente, com o
prior e outros amigos, de bons capões, faisães, perdizes e demais espécies de
aves, compreendeu o que queria dizer o monge; e receando ser apontado por ele às claras,
absolveu-o, permitindo-lhe comesse a seu talante; pior para quantos não sabiam
bem comer e beber.
Indo-se o abade, Dom Pompório, absolvido,
dia a dia dobrou a comida, acrescentando ao santo oratório do bom prato a
devoção; e porque era seriamente repreendido dos monges por semelhante bestialidade,
subiu ao púlpito do refeitório e com belos modos contou esta breve fábula:
- Encontraram-se, já faz muito tempo, o
vento, a água e a vergonha numa taverna, e comeram juntos; e, praticando de
coisas várias, disse a vergonha ao vento e à água: - "Quando, irmão e irmã,
voltaremos a estar juntos tão pacificamente como agora?" A água respondeu:
- "Certamente a vergonha diz a verdade; pois quem sabe quando virá ocasião de nos reencontrarmos
juntos? Mas, se eu te quisesse encontrar, ó irmão, onde fica a tua
morada?" Disse o vento: - "Minhas irmãs, cada vez que me quiserdes encontrar para gozarmos o
prazer de estar juntos, olhai por qualquer porta aberta, ou rua estreita
qualquer, que logo me encontrareis, pois é ali a minha residência. E tu, água, onde
moras?" - "Eu estou, disse a água, nos mais baixos pauis, entre aqueles caniços; e por mais seca que seja a
terra, sempre lá me encontrareis. E tu, vergonha, qual é a tua estância?"
- "Eu, em verdade, respondeu a vergonha, não sei, pois que sou pobrezinha e por todos
enxotada. Se olhardes entre os grandes, não me encontrareis, porque não querem
ver-me e zombam de mim. Se olhardes entre a piche, são desavergonhados que não se
importam comigo. Se olhardes entre as mulheres, tanto casadas como viúvas e
donzelas, tampouco me encontrareis, dado que fogem de mim como de coisa monstruosa. Se
olhardes entre os religiosos, longe deles estarei, pois que com bastões e
galhas me espantam; de sorte que até agora eu não tenho habitação onde pousar; e, se não
puder acompanhar-vos, veja-me privada de toda a esperança." Ouvindo isto,
o vento e a água moveram-se a compaixão e acolheram-na em sua companhia. Não ficaram juntos por
muito tempo, porque se levantou grandíssima tempestade, e a pobrezinha,
trabalhada do vento e da água, não tendo onde pousar-se, afundou no mar. Pelo quê eu a tenho
procurado em muitos lugares, e anda a procuro; mas não consegui encontrá-la,
nem a ela, nem a ninguém que me soubesse dizer onde ela estava. E, não a encontrando, não me
importo dela nem muito em pouco; e por isso obrarei à minha maneira, e vós à
vossa, pois que hoje no mundo não se encontra a vergonha.

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