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domingo, 28 de julho de 2013

O DIA QUE ME TORNEI INVISÍVEL



Já não sei em que data estamos.
Nesta casa não há folhinhas e, em minha memória
tudo está revolto.


As coisas antigas foram desaparecendo.
E eu também fui apagando sem que ninguém se desse conta. 


Quando a família cresceu, me trocaram de quarto.
Depois, me passaram a outro menor ainda acompanhada de minhas netas. Agora ocupo a edícula, no quintal de trás.


Prometeram-me trocar o vidro quebrado da janela, mas se esqueceram. E nas noites, por ali sopra um ventinho gelado que aumenta minhas dores reumáticas.

Um dia a tarde me dei conta que minha voz desapareceu.

Quando falo, meus filhos e meus netos não me respondem.
Conversam sem olhar para mim, como se eu não estivesse com eles.


Às vezes, digo algo, acreditando que apreciarão meus conselhos.
Mas não me olham, não me respondem. Então, me retiro para o meu canto antes de terminar a caneca de café. 


O faço para que compreendam que estou enojada, para que venham procurar-me e me peçam perdão… Mas ninguém vem.


No dia seguinte lhes disse:
- Quando eu morrer, então sim vão sentir minha falta.
E meu neto perguntou:- Estás viva, vovó? (rindo-se)

Estive três dias chorando em meu quarto, até que numa certa manhã, um dos meninos entrou a jogar umas rodas velhas… 


Nem o bom dia me deu. Foi então quando me convenci de que sou invisível.
Uma vez, os meninos vieram dizer-me que no dia seguinte iríamos todos ao campo.

Fiquei muito feliz. Fazia tanto tempo que não saía! Fui a primeira a levantar. Quis arrumar as coisas com calma.Nós, os velhos tardamos muito, assim, me ajeitei a tempo para não atrasá-los. 


Em pouco tempo, todos entravam e saíam da casa correndo,
jogando bolsas e brinquedos no carro. Eu já estava pronta e muito alegre. Parei na porta e fiquei esperando. Quando se foram, compreendi que eu não estava convidada. Talvez porque não cabia no carro.


Senti como meu coração se encolhia, o queixo me tremia como alguém que tinha vontade de chorar.

Eu os entendo. São jovens.
Riem, sonham, se abraçam, se beijam.

E eu... Antes beijava os meninos, me agradava tê-los nos braços, como se fossem meus.E, até cantava canções de berço que havia esquecido.


Mas um dia…Minha neta acabava de ter um bebê. Me disse que não era bom que os velhos beijassem aos meninos por questões de saúde. 


Desde então, não me aproximei mais deles. Tenho tanto medo de contagiá-los! Eu os bendigo a todos e os perdoo, porque...
que culpa eles têm, de que eu tenha me tornado invisível?

(Silvia Castillejon Peral)
Dedico esse conto a Letícia Maria, pois foi ela quem gentilmente me passou.
Uma garota a época com 19 anos, modelo, linda por dentro e por fora, gentil, solidária, amiga e atenciosa. Muitas outras garotas na idade e posição dela são orgulhosas e querem que os outros se danem, não ela, não a Lê Maria como a chamávamos, infelizmente perdi contato com ela e faz muito tempo que não conversamos, mas minha felicidade será imensa se acaso encontra-la novamente. Um beijão Lê, e muito sucesso na sua vida, pois você merece!

sábado, 1 de junho de 2013

FILEMON E BAUCIS

Júpiter, estando um dia ocioso no Olimpo, chamou seu filho Mercúrio e disse:
— Venha, vamos dar uma volta pelo mundo e testar a hospitalidade dos mortais.
Mercúrio, que adorava passear, concordou imediatamente. Já estava saindo junto com seu
pai, quando este o deteve:
— Espere, deixe aqui as suas asas.
— Por que, meu pai? — perguntou Mercúrio.
— Não seja tonto — disse Júpiter. — Se nos apresentarmos como deuses, obviamente
que seremos bem recebidos por todos.
Mercúrio concordou e, após desfazer-se de suas asas, seguiu junto com ele. Tão logo
chegaram à Terra, começaram a percorrer as estradas da Frígia, como se fossem dois pobres
andarilhos. Em alguns instantes estavam suados e cobertos de pó. De repente, avistaram uma
bela casa de campo. Bateram à porta por um longo tempo, até que surgiu do alto de uma janela
uma pequenina cabeça.
— O que querem, vagabundos? — gritou alguém, com irritação.
— Somos viajantes, bom amigo, e precisamos descansar — respondeu Mercúrio.
— Dêem o fora! — disse a pessoa à janela, desaparecendo em seguida.
Os dois viajantes, desgostosos com seu primeiro insucesso, partiram sem nada dizer. Era
um dia quente e úmido, e o sol estava exatamente acima de suas cabeças. Enquanto retomavam
seu caminho, Mercúrio tentava acalmar a ira de seu pai, que já se preparava para lançar naquela
casa um de seus terríveis e vingativos raios.
— Calma, pai! Não podemos tomar como exemplo um único caso. Tentemos aquela
outra casa, lá adiante.
De fato, um pouco mais além havia uma outra casa, um pouco menor do que a anterior,
mas muito bem cuidada. Os dois andarilhos chegaram à porta e outra vez prepararam-se para
pedir abrigo.
— Veja, pai, parece que há aqui alguma festa — disse Mercúrio, ao escutar no interior um
alarido de risos e de pratos. — Certamente que também nos convidarão para ela.
— Júpiter, no entanto, tinha um ar cético.
Mercúrio, temendo o pior, antes de bater à porta passou a manga de sua túnica
esfarrapada pelo rosto, a fim de melhorar o seu aspecto. Enquanto isto Júpiter já tomara a frente
e esmurrava a porta. Depois de quase pô-la abaixo, viu surgir um rosto gordo e inchado.
— Pois não, senhores! — disse o homem, com um forte hálito de vinho.
— Boa-tarde, meu bom homem — disse Mercúrio. — Somos viajantes, e o sol
inclemente impede que prossigamos nossa jornada. Poderíamos fazer aqui nosso descanso e uma
breve refeição, para que possamos renovar nossas forças?
— Desculpem-me, mas não posso recebê-los agora — disse o bêbado. -Minha filha casa
hoje e estou recebendo agora os meus convidados.
Mas, tomado por um acesso brusco de generosidade, chamou a criada e disse-lhe:
— Traga um prato com alguma coisa para estes dois aí!
Depois, virando as costas, sumiu-se de novo para o interior da casa. Trinta minutos se
passaram até que a criada, abrindo uma fresta mínima na porta, passou pelo vão um pequeno
prato, com as sobras ajuntadas de dois ou três convidados.
— Deixem o prato aí e desapareçam — disse a criada, com uma voz áspera. Mas, ao
introduzir o prato no estreito vão, ela o inclinara de tal modo que virara no chão a metade do seu
conteúdo. Cinco ossos com alguns nacos de carne era tudo o que restava da estreita generosidade
daquela alegre e festiva casa. Mercúrio ainda os estudava, na esperança de encontrar algo que
pudesse revelar-se como um sinal de autêntica generosidade, sem ousar erguer os olhos para seu
colérico pai. Júpiter, por sua vez, depois de mirar com fúria a casa, partiu, procurando de
qualquer modo controlar o seu gênio.
Já era adiantado da tarde quando chegaram, sedentos e famintos, à porta de uma terceira
casa. Esta, embora modesta, parecia ainda a salvo da miséria. De dentro das suas paredes
escapava o ruído contínuo e vigoroso de um sopro, como se um grande fole trabalhasse ali sem
trégua. Mercúrio bateu à porta uma, duas, dez vezes. Um murmúrio fez-se ouvir de uma das
janelas, ao alto. Uma sombra por detrás da cortina revelava que alguém espiava, desconfiado. De
repente, porém, liberta do medo, a pessoa afastou, de par em par, os dois panos. Era uma
mulher, que segurava um lençol à frente do seu torso nu.
— O que querem, mendigos? — perguntou a mulher, impaciente, enquanto ajeitava os
cabelos.
Júpiter e Mercúrio entreolharam-se, em dúvida.
— Vamos lá, que tenho mais o que fazer! — exclamou a mulher, deixando cair a
proteção, com um ar distraído.
Às suas costas, uma voz masculina disparou um desaforo.
— Só queremos um pouco de repouso e algum alimento! — disse Mercúrio.
— Eles querem repouso! — disse a mulher, virando-se para dentro, num tom de deboche.
Um homem surgiu, então, por detrás dela e disparou outro desaforo aos dois andarilhos,
fechando em seguida, com estrondo, a janela. Júpiter e Mercúrio tiveram de seguir novamente o
seu caminho sob o ruído estridente do fole que começara a trabalhar lá dentro, outra vez, a toda
fúria.
Já estavam exaustos, quando chegaram, afinal, à frente de uma humilde choça, coberta de
palha. Com receio de derrubar a frágil porta, Júpiter bateu palmas, enquanto Mercúrio, um pouco
mais atrás, apenas o observava, sem acreditar em mais nada. De dentro da choupana, entretanto,
surgiu o rosto enrugado de um velho.
— Bom-dia, meu senhor— disse Júpiter. — Somos dois andarilhos e gostaríamos...
Antes, porém, que Júpiter concluísse, a porta foi escancarada.
— Entrem, por favor — disse o velho, dando-lhes a passagem.
Os dois, surpresos, entraram na casa. Embora já estivesse um pouco escuro ali dentro, a
casa ainda não tinha iluminação alguma. Da penumbra avançou para eles uma velhinha, toda
encurvada, que os cumprimentou de maneira discreta. Ele chamava-se Filemon, e ela, Baucis.
Casados há muitos anos, viviam desde então naquela modesta casa, enfrentando juntos as
privações naturais da pobreza. Não tinham criados nem filhos.
— Por favor, sentem-se aqui — disse Filemon, estendendo duas cadeiras aos visitantes,
tomando antes o cuidado de forrá-las com um pouco de palha limpa.
Enquanto isto, Baucis tentava reavivar um resto de fogo que ainda se escondia por
debaixo das cinzas. Filemon, por sua vez, arrancou alguns gravetos da cobertura da choça,
retirando também dos caibros um pouco da palha que protegia a casa das constantes chuvas.
Baucis dirigiu-se à horta e de lá retornou trazendo um maço de verduras e as lançou com gosto
dentro de uma vasilha. Filemon pegou a faca e cortou um bom pedaço do toucinho que pendia
do teto. lançando-o na sopa, indo logo em seguida conversar com seus visitantes, para que estes
não se sentissem abandonados.
Baucis pegou a melhor toalha que possuíam, toda velha e cheia de furos de traças; ergueua
para o alto duas ou três vezes, inflando-a, até que a peça desabou exaurida sobre a madeira
escura da mesa, com o ânimo triste e abatido das mortalhas. A sopa, a essa altura, já estava
pronta. Baucis trouxe logo para a mesa a panela de barro fumegante. Em seguida, depositou
sobre a mesa um cesto contendo um pão, ainda em bom estado, e um pequeno pedaço de queijo.
Para completar, o velho anfitrião retirou de seu esconderijo uma garrafa de vinho.
— Os senhores nos perdoem se não for o bastante — disse o velho, obsequioso.
depositando a garrafa diante de Júpiter -, mas é a única que nos restou.
Começaram todos, assim, a se regalar como podiam com aquela prosaica refeição.
— O senhor não bebe? — disse-lhe, de modo vago, Júpiter.
O velho, afetando uma dor de lado, fez que não. No entanto, ao voltar os olhos para sua
querida garrafa, percebeu que ela estava, diante de si, cheia até o gargalo, embora os visitantes
estivessem com seus copos também cheios, até as bordas. Compreendendo tudo, o velho ergueuse,
assombrado:
— Júpiter todo-poderoso! — exclamou Filemon, virando-se para sua esposa. — Baucis, é
o pai dos deuses quem temos diante de nós!
A pobre velha, engasgando-se, teve de ser socorrida pelo filho de Júpiter, antes de
entender direito o que se passava.
— Que vergonha! — exclamava Filemon, cobrindo o rosto com as mãos. -Veja, Baucis,
querida, o que temos a coragem de servir para Júpiter e seu filho...
Júpiter, entretanto, acalmou os dois velhos, dizendo-se muito satisfeito com aquela
refeição. E ordenou aos amáveis anfitriões:
— Agora, levantem-se e me acompanhem.
Júpiter saiu porta afora, levando atrás de si os dois velhos, que, apoiados com dificuldade
em seus cajados, procuravam acompanhar o passo firme dos dois deuses. Subiram todos à
montanha vizinha e, uma vez ali, Júpiter perguntou-lhes o que mais desejavam na vida.
Depois de conversarem baixinho por um bom tempo, os dois velhinhos chegaram a um
acordo.
— Queríamos a graça de não sobrevivermos um ao outro — disse Filemon. Tão logo
terminou de falar, um terrível temporal desabou sobre a campina onde ficava a humilde choça.
Os dois velhos, aterrados, viram então todo o vale cobrir-se de água, fazendo desaparecer todas
as outras casas onde os deuses haviam sido mal recebidos. Passaram, assim, mortos, na corrente
raivosa das águas, o primeiro anfitrião, que sequer lhes ouvira o pedido, depois o velho bêbado,
junto com dezenas de seus convidados, e, finalmente, o casal de amantes, abraçados em meio à
correnteza.
A modesta choupana de Filemon e Baucis também parecia ruir, o que arrancou de Baucis
um grito de terror:
— Filemon querido, nossa casa também se vai!
No entanto, no lugar da choupana que ruíra, colunas de mármore levantavam-se.
Escorado sobre elas repousava um magnífico e solene teto de ouro. Paredes, também do mais
fino mármore, fixavam-se, além de uma magnífica porta prateada, onde figuravam os mais belos
baixos-relevos.
— A partir de hoje vocês serão os sacerdotes exclusivos deste templo! — disse-lhes
Júpiter, retirando-se com seu filho, sob os olhos agradecidos dos velhos.
Passaram a viver ali, em meio à fartura, Filemon e Baucis, até a mais extrema velhice —
pois Júpiter ainda lhes acrescentou muitos anos de vida, repletos de saúde. Mas, como tudo tem
um fim para os mortais, um dia, quando ambos estavam sentados nos degraus do palácio, Baucis
deu um grito:
— Filemon, o que é isto em seus pés?
Um tufo de ervas começara a surgir do velho, enquanto ele falava. O mesmo fenômeno
repetia-se com a sua esposa, que já tinha as pernas inteiras recobertas de vegetação. Aos poucos
seus corpos foram recobrindo-se de folhas, até que em poucos minutos viram-se ambos transformados em duas belas e imponentes árvores, de raízes e galhos entrelaçados para sempre.

O CASTIGO DE ERESICTÃO

Qualquer mortal sensato sabia que o respeito era a principal oferenda que se devia a Ceres, a deusa da fertilidade. Sem os favores dessa importantíssima divindade, qualquer criatura estava ao desamparo. Tudo ao seu redor virava secura e desolação, até que o desgraçado se
decidisse a também venerar a exigente deusa. Além do mais, não havia razão alguma para que se faltasse com este dever, pois ela era, dentro do panteão das divindades, uma das mais simpáticas e dignas. Havia muitos bosques consagrados a Ceres, e é num deles que esta história começa.
Era geralmente durante as primeiras horas do dia que os devotos de Ceres vinham fazer as suas oferendas, para agradecer a boa colheita ou para pedir que a próxima fosse mais abundante. Ao centro da floresta postavam-se os fiéis. Modestos camponeses, homens e mulheres, trazendo pequenos cestos com uma ou duas frutas, apenas, forrados com flores que as crianças colheram no próprio bosque, para tornar sua oferta um pouco mais caprichada. Outros, ainda, ofereciam a Ceres apenas simulacros de ofertas: no lugar de pães, pequenos arranjos
redondos de terra, recobertos com uma leve mão de farinha. Oficiando o culto, costumava ficar a
sacerdotisa de Ceres, envolta em seu manto e segurando um feixe de espigas. A deusa, em algum
lugar, a tudo observava.
De repente, porém, ouviu-se, vindo de fora do bosque, um rumor de vozes masculinas, nas quais gritos entremeavam-se a cantos. Não eram, contudo, cantos sacrificiais. O ruído do vozerio aumentou a ponto de a sacerdotisa ver-se obrigada a interromper o culto. Logo surgiu por entre as árvores um grupo de homens que tem o ar descontraído e folgazão. Eles portavam grandes machados sobre os ombros e olham divertidamente, cutucando-se uns aos outros, ao perceber o que se passa.
— Vai demorar muito aí, dona sacerdotisa? — perguntou um deles, com o grande dente
de ferro do seu machado faiscando no ar e com um olhar de impaciência.
— O tempo suficiente para que o silêncio se restabeleça e possamos recomeçar nosso
culto — respondeu a sacerdotisa, calmamente, dando-lhe as costas.
Um homem gordo e imenso — que parecia ser, de fato, o líder do grupo — afastou com
uma das mãos o lenhador, como quem afasta um galho do rosto. Depois, adiantando-se, tomou a
palavra:
— A senhora pode prosseguir com sua ladainha, que nós cumpriremos a nossa tarefa, a nosso modo — disse. — Adiante, vamos colocar abaixo estas árvores!
Esse homem rotundo era Eresictão, homem rico e poderoso. Ele estava decidido a construir um novo palácio para si com a madeira de toda a floresta.
— O que pensa que está fazendo? — gritou, indignada, a sacerdotisa. Mas sua voz humana já não era o bastante para se sobrepor ao ruído dos machados, que estalam com vigor sobre os troncos das árvores.
Ceres, que tudo vira, decidiu ela própria tomar a palavra, falando pela boca de sua sacerdotisa.
— Fora, invasores! — gritou a deusa, cuja voz vibrante silenciava todos os machados. — Como ousam destruir este bosque, consagrado exclusivamente a mim?
— Preciso destas árvores, dona — disse Eresictão.
— Ninguém tocará nestas árvores, sob pena de terrível castigo — advertiu Ceres.
— Dona, não fique nervosa. Há milhares de bosques espalhados por toda esta região.
Escolha outro e deixe-nos trabalhar em paz.
— Você insiste em me desafiar? — disse a deusa, encolerizando-se.
O homem, ao perceber que Ceres avançava para si, empunhou com vigor o machado.
— Para trás, mulher, ou a farei em pedaços!
Ceres, então, resolveu aparecer com a sua própria aparência.
— Maldito! — gritou a deusa. — A partir de agora você está sob o peso da minha
maldição...
Eresictão, diante daquela assustadora intervenção, deu um grito de terror, lançou para o alto o machado e pôs-se a correr, espavorido, juntamente com os seus homens. Chegando em seu
castelo, Eresictão correu para os seus aposentos. Decidiu andar um pouco pelo quarto, para
dissipar o medo. Ali vagou durante longos cinco minutos, até que uma fome repentina o obrigou
a sair. Pé ante pé, Eresictão retornou ao salão. Tinha um vago receio de que algo pavoroso tivesse
acontecido. Não, tudo parecia em ordem. A sua querida mesa ainda estava lá, embora terrivelmente vazia. Ainda era cedo, mas a correria e o terror adiantaram o relógio do seu
estômago.
— Cozinheiros! — troveja Eresictão.
— Pois não, senhor? — responderam os quatro cozinheiros.
— Estou morto de fome. Adiantem o almoço.
— Sim, senhor — e voltaram à cozinha.
Uma fome terrível lhe devorava as entranhas. Nunca sentira fome parecida.
— Vamos, tragam logo a comida! — rugia Eresictão, sentindo um vácuo crescer-lhe no
estômago.
Imediatamente os criados surgiam com os primeiros pratos, que desapareceram em questão de minutos em sua goela voraz. Sua fome gigantesca, porém, em nada foi aplacada.
— Mais comida! — rugiu outra vez Eresictão.
Os quatro cozinheiros preparavam tudo o que enxergaram na despensa, enquanto os criados levavam para o salão imensas travessas repletas de comida. Instantes depois retornavam com elas completamente limpas.
— Mais comida! — ouvia-se, ainda.
Nada parecia bastar ao apetite bestial de Eresictão, que começava a se tornar colérico.
— O que está havendo aí dentro? — gritou, com a boca cheia. — Tragam comida de
verdade!
Numa medida extremada, o chefe dos cozinheiros ordenou que o maior dos javalis fosse abatido e assado imediatamente sobre uma grande fogueira, montada às pressas no pátio. O dia fez-se noite quando a fumaça do assado levantou-se das brasas e cobriu o sol como uma imensa nuvem de incenso. Eresictão, sentado à mesa, despejou sobre ela uma cachoeira de saliva, enquanto aguardava, impaciente, o prato principal.
Dez escravos carregaram numa imensa bandeja de prata o monstro dourado e fumegante,
coberto de ervas aromáticas e guarnecido por fatias de duzentos abacaxis. O maravilhoso prato
chegou aos olhos de Eresictão como uma sublime oferenda de ouro. Em dez minutos a travessa
retornou à cozinha contendo somente os ossos do javali, empilhados junto às suas presas.
— Mais comida! — era o refrão incessante que se ouvia no salão. Florestas inteiras de verduras já haviam entrado para dentro do estômago do patrão; uma plantação inteira de batatas também sumiu nos abismos daquela caverna sem fundo. Sua fome colossal era acompanhada de uma terrível sede, que o obrigava a beber sem parar imensas jarras de vinho, que ele lançava, depois de esvaziadas, à cabeça confusa dos seus escravos.
— Tragam mais!
Eresictão não se levantava da mesa. Quanto mais comia, mais insistentes tornavam-se os
seus pedidos. Os cozinheiros já não sabiam mais o que colocar nas panelas. Todas as aves de
criação já haviam passado pelo holocausto das chamas. No terror das exigências, treze gatos,
vinte cachorros e até mesmo a parelha de cavalos que puxava o carro de Eresictão foram
lançados vivos na fornalha. Ele não distinguia mais nada, engolindo até os ossos.
Quando chegou a noite, Eresictão ainda estava à mesa. Seu rosto, no entanto, estava um tanto mais magro, e sua pança parecia ter recuado um pouco para dentro do manto. Por incrível que parecesse, Eresictão estava emagrecendo! Preso à mesa, o pobre homem, gordo e famélico, implorava:
— Comida, meus escravos... Pelo amor de Deus, mais comida...
A noite passou-se em comilanças. Não tendo mais, enfim, o que comer em casa, Eresictão saiu em desespero pelas estalagens, devorando tudo o que encontrava nessa selvagem expedição noturna. Quando o sol retornou, encontrou-o devorado por uma fome infinitamente maior do que aquela com a qual sentara-se pela primeira vez à mesa. Seu corpo estava debilitado.
Suas faces começaram a encovar-se. Suas mandíbulas, de tanto comer, doíam a ponto de não
poder mais movê-las. Suas vestes pendiam do corpo. Eresictão estava a meio caminho de se
tornar um espectro de si mesmo.
Seus pais, alarmados, quiseram saber o que se passava com seu pobre filho.
— Meu filho, o que houve com você? — exclamou a mulher. Horrorizada, ela arrancou os cabelos, tirando sangue do rosto com as unhas.
Seu pai, com o passar dos dias, gastou também tudo o que tinha na vã tentativa de alimentar o seu insaciável filho. Até o touro que sua esposa engordava para sacrificar a Vesta, a deusa virgem do lar e do fogo, foi sacrificado ao altar desta horrenda fome. A miséria chega, afinal, para o desgraçado Eresictão.
O seu pai, não podendo mais fazer nada — pois tornara-se miserável, também -, abandona-o à própria sorte, reduzido à mais negra mendicância. Passava os dias sentado nas praças, recolhendo de forma vil os restos que até os cães cobertos de sarna refugam. O único consolo é ter ainda ao seu lado Metra, sua dedicada filha.
— Minha querida filha, faça-se o mais bela que puder — disse, um dia, Eresictão.
— Por quê, meu pai? — indagou Metra, acariciando-lhe a face encovada.
— Vou vendê-la.
— Vender-me?
— É preciso... Eu preciso -justificou o velho, fraco e faminto.
No mesmo dia a bela e encantadora Metra foi feita escrava nas mãos de um horripilante comerciante. Depois de passar pelo suplício das carícias daquele homem abominável, Metra, à noite, remeteu a Netuno as suas mais ardentes preces, enquanto o seu odioso amo, ao lado, roncava:
— Poderoso Netuno, livra-me disto! — rogou, lançando um olhar ao seu algoz. O deus,
apiedado, decidiu atender às suas súplicas. Para tanto, converteu-a numa jumenta. Assim,
enquanto seu amo ainda ressonava, Metra levantou-se do leito, firmou bem as quatro patas e,
dando um grande salto, escapou pela janela. No mesmo instante correu, feliz, ao encontro de seu
pai.
— Meu querido pai, voltei! — disse, lambendo a face escaveirada do seu progenitor.
— Minha adorada filha! Como estou feliz em tê-la de volta! Depois, voltando-se para um
carroceiro que passava:
— Ei, quanto quer por esta magnífica jumenta?
Um zurro de dor partiu da infeliz Metra, que foi levada embora outra vez. Mas também deste novo amo conseguiu escapar, metamorfoseada num cão e retornando novamente para os braços do pai, que a revendeu outra vez. Transformada, assim, em fonte inesgotável de recursos, a infeliz Metra percorreu toda a escala zoológica, até que um dia, metamorfoseada numa linda borboleta, desapareceu para sempre no ar.
Eresictão, perdendo sua última fonte de renda e devorado por uma fome absolutamente
insuportável, decidiu tomar uma atitude que seu orgulho insensa-: até então impedira. Entrando
naquele mesmo bosque que maculara com sua blasfêmia, pediu perdão à vingativa Ceres.
— Ceres poderosa! — começou a dizer Eresictão, com as mãos postas. -Concede-me a graça do seu perdão, ó deusa, cujos olhos brilham com graça e majestade por todo o Olimpo!
Ouve-me, por piedade, ó magnífica deusa!
A deusa, no entanto, não lhe deu ouvidos. Tomado pelo desânimo, Eresictão sentou-se, derrotado, à sombra das árvores. Era noite e caía uma chuva forte, filtrada para dentro do bosque sob a forma de cordas d'água que se balançavam do alto. Os relâmpagos intensos varavam a escuridão, iluminando inteiramente o seu corpo — um esqueleto coberto apenas por uma fina camada de pele. Eresictão estava sentado, com os olhos pousados sobre o próprio pé.
Vislumbrou ali uma protuberância, que sugeria a presença de um pouco de carne. Sem hesitar,
arreganhou os dentes e cravou-os com força sobre o membro, arrancando-o e engolindo-o
inteiro. Durante a noite inteira o ímpio Eresictão saciou-se de si mesmo, sob a luz dos relâmpagos, até que na manhã seguinte nada mais restava dele sobre a face da Terra.