VEJA desta semana traz reportagem sobre a mais completa e surpreendente biografia do petista, as aventuras, traições, amores e tramoias do líder estudantil bonitão e mulherengo que virou o segundo homem mais poderoso da República - e que agora se encontra a caminho da prisão
Thaís Oyama
(Eliária Andrade/Agência O Globo )
Em 3 de janeiro de 2003, um mineiro nascido em Passa Quatro, ex-líder estudantil e ex-militante de esquerda perseguido pela ditadura militar se tornava o segundo homem mais importante da República. José Dirceu de Oliveira e Silva havia sido no-mea-do ministro-chefe da Casa Civil do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o operário que chegou ao Palácio do Planalto. Juntos, esses dois homens de biografia extraordinária prometiam mudar o Brasil. O primeiro ato que Dirceu assinou no cargo foi bem menos grandioso, mas revelador de seu caráter. Era uma portaria que mudava a ordem de entrada dos ministros nas solenidades do palácio. Historicamente, depois do presidente da República, vinha o titular do Ministério da Justiça, por ter sido a primeira pasta a ser criada. Dirceu transferiu a prerrogativa para si: quem apareceria caminhando logo atrás do presidente seria ele, o chefe da Casa Civil - que, a partir de então, teria também a primazia no uso de carros oficiais e de aviões da Força Aérea Brasileira.
De autoria do jornalista Otávio Cabral, editor de VEJA, Dirceu - A Biografia (Record; 364 páginas; 39,90 reais, ou 27 reais na versão digital) conta esta e outras tantas histórias definidoras da personalidade do biografado, o que faz do livro um daqueles difíceis de largar. Para escrever a mais completa e surpreendente biografia de um dos mais complexos e enigmáticos personagens da história recente do Brasil, Cabral analisou 15 000 páginas de documentos garimpados no acervo de nove arquivos. Entrevistou 63 pessoas, anônimas e públicas, cuja confiança conquistou ao longo dos treze anos em que atua como repórter de política - primeiro pela Folha de S.Paulo e, desde 2004, em VEJA.
Veja a 1ª parte da Biografia
Um golpe pela janela
“Um dia seu filho será presidente da República.’’
José Dirceu, aos 8 anos, para a mãe, dona Olga.
A noite era de festa na casa dos Oliveira e Silva, na pequena cidademineira de Passa Quatro,
na noite de 12 de outubro de 1968. A família se reuniu na sala para a
primeira transmissão da televisão queo patriarca, seu Castorino, havia
recebido de um consórcio poucashoras antes. Um televisor modesto,
pequeno e em preto e branco,mas um dos primeiros a chegar à cidade de 11
mil habitantes, encravada na Serra da Mantiqueira, no Vale do Paraíba,
divisa entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. O aparelho enchia
de orgulho Castorino e, principalmente, sua mulher, Olga. Os vizinhos
invejavam a aquisição e se aboletavam à janela do sobrado para
compartilhar a novidade. O noticiário da noite, porém, teve início com
uma imagem que marcou para sempre a vida de dona Olga Guedes da Silva:
seu filho José Dirceu era empurrado por policiais para um camburão que
sumia na estrada de terra.
José
Dirceu de Oliveira e Silva, o xodó de dona Olga, havia sido preso em um
congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna,
cidade próxima a São Paulo, para onde migrara sete anos antes. O locutor
descrevia o filho de Olga e Castorino como um dos líderes dos
oitocentos estudantes que se reuniram em um
sítio
para conspirar contra o regime militar que governava o país havia
quatro anos e meio. E previa que ele passaria um bom tempo na prisão,
para servir de exemplo a outros jovens. Dona Olga deixou a família e as
visitas na sala e foi chorar no quarto. Desde pequeno, Dirceu, o
terceiro de seus seis filhos, lhe dera muito trabalho. A
distância
e a falta de comunicação do jovem, vivendo sozinho na cidade grande,
lhe tiravam o sono. Imaginava que muita coisa ruim pudesse lhe
acontecer. Mas cadeia foi além de seus piores pesadelos.
Essa
não era a primeira confusão em que se metia o rapaz nascido a 16 de
março de 1946, naquela mesma casa. Era apenas a primeira transmitida em
rede nacional de televisão.
Castorino
era dono da gráfica Ordem e Progresso, a única da cidade, e militante
da União Democrática Nacional, a UDN, o partido da direita católica.
Educava com rigor seus sete filhos. Conheceu Olga na vizinha Cruzeiro,
já no estado de São Paulo, onde seus parentes ganhavam a vida como
ferroviários e ele costumava passar
os
finais de semana. Os filhos de Castorino precisavam ir à missa aos
domingos, rezar antes das refeições, pedir a bênção para sair de casa e
trabalhar desde cedo. Aos 8 anos, Dirceu já corria as ruas da cidade
entregando pão; em seguida, caminhava pela linha do trem até o Grupo
Escolar Presidente Roosevelt, onde cursou o primário.
Foi nessa época que, em um surto de grandeza, disse à mãe antes de dormir: “Um dia seu filho será presidente da República.”
Quando Dirceu
tinha 10 anos, Castorino lhe conseguiu uma vaga no Ginásio São Miguel,
mantido por padres franceses da ordem de Bétharram. Era o melhor colégio
da região. E ainda por cima gratuito.
Para
tanto, Castorino teve de apelar a seus contatos políticos. Fora
candidato a vice-prefeito, era um dos provedores da Santa Casa e Em
entrevista publicada pela revista Playboy, em agosto de 2007.
Em
sua gráfica eram impressos os panfletos de todos os candidatos das
redondezas. Dirceu lembra com carinho da temporada no São Miguel: “Lá
havia uns vinte padres de umas dez nacionalidades, uma coisa fantástica!
Convivi com homens de dez nacionalidades diferentes e tive uma educação
de altíssimo nível.”
Na
escola, acuado pela disciplina severa dos religiosos, o garoto se
continha, embora suas pregações agnósticas a partir dos 12 anos tenham
lhe rendido algumas advertências e castigos. Cada vez que dizia que Deus
não existia era um terço a mais a ser rezado. Na reincidência, sua mão
queimava com golpes de palmatória. Longe
dos
padres, era outro. Amarrava barbante em rabo de cachorro, colocava
bombinhas presas no rabo dos gatos, pulava muros de casa para roubar
frutas, descia o rio em balsas feitas de folha de bananeira— que
constantemente naufragavam com outras crianças, levando as mães ao
desespero.
Liderava
um grupo de garotos que se identificavam por um assobio e que se tornou
o terror da cidade. Nem os castigos de Olga e Castorino o freavam. Passa Quatro
foi ficando pequena para ele e suas confusões e ambições. Só esperava o
fim dos estudos para ganhar o mundo. “Queria de todo jeito sair da
minha cidade. Quando eu sentava na praça, sozinho, pensava: ‘Quanto
tempo falta para terminar, pegar uma carona e ir embora para São
Paulo?’”
Não
demoraria muito. No início de 1961, ainda com 14 anos, pegou uma carona
com um conhecido da família e foi embora. As professoras e as mães dos
amigos comemoraram: “Estamos livres do Zé Dirceu, aquele menino filho do
seu Castorino.”
O pai o apoiou. A mãe, chorando, aceitou a decisão.
Em entrevista a Caio Túlio Costa para o Projeto Memória do Movimento Estudantil, em 17 de dezembro de 2005.
Idem.
Dirceu, José e Palmeira, Vladimir;
Abaixo a ditadura
Naquela
época, era costume das famílias escolher um filho para viver na cidade
grande, onde havia boas escolas e oportunidades de trabalho — em Passa Quatro, sequer existia escola de ensino médio. Mas Dirceu se impôs, decidiu ir e pavimentou seu caminho
.
Como
a partida era inevitável, Castorino conversou com um primo que já
morava na capital paulista e conseguiu um emprego para o filho, como
office boy, na imobiliária do deputado estadual Nicola Avallone Júnior,
ex-prefeito de Bauru. Conservador, Nicola cumpria seu segundo mandato,
pelo Partido Democrata Cristão. Antico-munista ferrenho, era dono do
Diário de Baurue respondia a um processo por ter dado, ainda prefeito,
uma Romi-Isetta amarela a Pelé em 1958, quando o Brasil ganhou seu
primeiro mundial de futebol. Apesar do conservadorismo, tinha uma
relação afetuosa com o novo funcionário.
A São Paulo que Dirceu encontrou, em 1961, já tinha 4 milhões de habitantes, trezentas vezes maior do que sua Passa Quatro
natal. À noite, quando deixava a imobiliária, cursava o colegial no
Colégio Paulistano, na rua Avanhandava, próximo à praça da Sé. Ainda
antes de completar 15 anos, em plena São Paulo do início da década de
1960, uma nova vida se descortinou para o garoto do interior. E a
principal responsável por isso foi Maria Aparecida Sá de Castelo Branco,
a secretária da imobiliária do deputado, que preferia ser chamada de
Cíntia. “Era uma mulher linda, simplesmente maravilhosa, que me ensinou
tudo: fui chefe do almoxarifado, trabalhei como arquivista, trabalhei na
tesouraria, como relações públicas, no atendimento, na coordenação do
escritório. Durante três anos e meio, fiz de tudo ali”
— relembra José Dirceu.
Cíntia lhe ensinou quase tudo.
Em entrevista a Caio Túlio Costa para o Projeto Memória do Movimento Estudantil,
em 17 de dezembro de 2005. Com dinheiro contado, ele foi morar em uma
república no Edifício São Vito, ao lado do Mercado Municipal, o mais
famoso
treme-treme de São Paulo. Dividia os pouco mais de vinte metros
quadrados com sete marmanjos: eram dois beliches e um sofá, no
qual dormia com um colega de Passa Quatro, Wilson Siqueira. Certa
noite, ao voltar para casa, encontrou no elevador uma mulher de 35
anos. Começaram a conversar e, dias depois, ainda em seu primeiro
mês na cidade grande, o garoto de 14 anos perdia a virgindade com
uma mulher 21 anos mais velha. “Ela também estava muito a fim e
me proporcionou um ótimo começo” — este, o único comentário
que já fez a respeito.
O
mais jovem atormentou tanto os mais velhos que acabou expulso da
quitinete após oito meses. Era indisciplinado, recusava-se a dividir as
tarefas da casa, como lavar louça e limpar o banheiro, e atrasava o
pagamento das contas. Usava roupas alheias sem avisar e pegava comida
dos outros na geladeira. No terceiro aviso, portanto,
teve
de deixar o apartamento para ir morar em um quarto de pensão na rua
Taquara, na Liberdade, por onde hoje passa a avenida 23 de Maio. O
dinheiro era tão curto que a principal diversão do jovem caipira —
zombado pelos colegas por ser mineiro e pelo sotaque —consistia em andar
pelas ruas de São Paulo vendo vitrines.
Também
gostava de acompanhar pelo rádio os jogos do Corinthians, time que
adotou ao chegar à cidade, renegando a paixão de infância pelo Flamengo.
“Eu não tinha dinheiro para nada. Eu não tinha roupa praticamente.
Vestia a mesma roupa por quinze dias.
Vivi uma época em São Paulo quase como um trombadinha.”
Nos momentos de maior dificuldade, apelava para Cíntia, que o abrigava, dava comida e comprava roupas.
Em entrevista à edição de janeiro de 1992 da revista Playboy.
Em entrevista a Caio Túlio Costa para o Projeto Memória do Movimento Estudantil, em 17 de dezembro de 2005.
Dirceu
concluiu o ensino médio em 1963 e, no início do anoseguinte,
matriculou-se no cursinho pré-vestibular Di Túlio, na ruaConde de
Sarzedas, na Liberdade. Mudou-se para uma repúblicapróxima, onde dividiu
um quarto com Celso de Mello, então estudante de Direito na
Universidade de São Paulo e futuro ministro do Supremo Tribunal Federal.
Sua situação financeira começou a melhorar nessa época. Conheceu o
novelista Vicente Sesso, com quem foi trabalhar na TV Tupi, ajudando a
redigir roteiros e fazendo figuração em alguns programas. Sesso era, ao
lado de Cassiano Gabus Mendes, o principal autor da televisão
brasileira. Quando Dirceu o
conheceu,
na festa de aniversário de um colega de imobiliária, ele acabara de
escrever Minha doce namorada, que deu à atriz Regina Duarte o apelido de
“a namoradinha do Brasil”. Sesso viu talento no jovem eloquente e
criativo. Assim que apareceu uma vaga em sua equipe na televisão,
resolveu apostar no recém-conhecido.
Envolveu-se
tanto com o trabalho que foi praticamente adotado por Sesso, que o
levou para morar em sua casa, no mesmo quarto de seu filho adotivo, o
ator Marcos Paulo, morto em 2012. Alojado na casa do novelista,
trabalhando no escritório de Avallone e na TV Tupi, afinal sobrava
dinheiro para se aventurar pela noite paulistana.
Em
uma boate, conheceu uma dançarina chinesa, teve um ardente caso de amor
e deixou de lado as tarefas passadas por Sesso. Na terceira vez que o
deixou na mão, foi demitido e despejado. Sem dinheiro e sem casa, perdeu
também a namorada.
No
cursinho, José Dirceu se aproximou de um grupo de professores e alunos
que estudava Marx e debatia as reformas do governo de João Goulart, o
Jango, presidente que assumira dois anos antes, com a renúncia de Jânio
Quadros, e desde o primeiro dia no cargo sofria forte oposição dos
militares e dos partidos de direita — principalmente a UDN de seu
Castorino. Mais para se opor ao pai do que por ideologia, Dirceu apoiava
o governo Jango, o que provocava longas discussões nas raras ligações
telefônicas para Passa Quatro.
Um
conterrâneo de Minas que também gostava de Jango ofereceu a José Dirceu
um emprego na Distribuidora Nacional de Materiais Básicos, uma empresa
de estruturas metálicas. A função e o salário eram semelhantes aos do
escritório de Avallone. No novo trabalho, porém, seria registrado, algo
que o antigo patrão jamais aceitara fazer.
E também deixaria para trás as discussões políticas acaloradas com Avallone, opositor de primeira hora de Jango.
Em
seguida, veio o golpe militar de 1º de abril, que depôs Jango e
instalou em seu lugar o marechal Humberto de Alencar Castello Branco. De
cara, José Dirceu se posicionou contra os militares. No dia posterior
ao golpe, foi fazer um serviço externo no Banco Real da Praça da
República, em um prédio ao lado da Floricultura Rinaldi.
Estava no terceiro andar e viu pela janela a passeata dos alunos da Universidade Mackenzie. Comemoravam a derrubada de Jango.
A
imagem definiu a posição que Dirceu teria dali em diante. “Eu já sabia
de que lado estava, não tinha dúvida de que se tratava de um problema de
classe. Eu era umoffice boy, que tinha trabalhado e estudado, e não
tinha dúvida nenhuma de que a elite de São Paulo estava apoiando o golpe
militar.”

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